quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Uma perspectiva sobre o teatro e as artes performativas contemporâneos em Portugal


Queria começar por dizer que o assunto ao qual me vou referir – o teatro e artes performativas contemporâneos em Portugal, sobretudo o teatro – podia necessariamente ser abordado de um outro ponto de vista, relativamente ao que vou adoptar, e que por conseguinte a leitura que vou apresentar é certamente condicionada pelo ponto de vista adoptado, pelo meu conhecimento e pelas minhas preferências. Por exemplo, seria possível traçar um panorama, provavelmente mais completo, mas certamente mais problemático do teatro português, considerando um livro publicado pelo Teatro Municipal São Luiz, que, a propósito das comemorações do Dia Mundial do Teatro, pediu a artistas e a outros profissionais, ligados ao teatro e às artes performativas, que formulassem três desejos relativamente àquilo que genericamente podemos designar ‘o teatro em Portugal’1. Ler esses desejos possibilita perceber o que de bem e mal se vive no teatro português, a multiplicidade de posições relativamente aos mesmos factos, e também permite equacionar princípios fundamentais de uma política cultural que tão necessária é.
Outra possibilidade, certamente mais ousada e ainda mais perigosa, seria considerar que um possível panorama das artes performativas portuguesas era aquele que nos seria possível traçar a partir dos vídeos lançados por artistas e instituições no Youtube.
Não é esta contudo a minha estratégia, e, uma vez que me interessa apresentar uma perspectiva geral da realidade teatral e das artes performativas em Portugal, tentei experimentar a validade de uma tese que me permitisse dar sentido ao actual panorama teatral português e ao que julgo serem as suas principais orientações. Antes contudo de passar à exposição dessa tese queria assinalar um aspecto que tem algo de paradoxal e um outro aspecto que me parece geral e preliminar.
O aspecto paradoxal é o de que se, por um lado, devemos congratularmo-nos com as inúmeras manifestações e estruturas ligadas às artes performativas em Portugal, e à cada vez maior descentralização dessas acções, pessoas e instituições, por outro lado, parece-me inevitável afirmar que, provavelmente, elas existem em excesso para a dimensão do país, ou pelo menos não obedecem a uma política de crescimento e ordenamento cultural clara e definida. Um dos resultados dessa situação é a endémica precariedade profissional daqueles que se encontram nessas estruturas e que por elas são responsáveis e dos que, em virtude dessa precariedade, têm uma vida artística e teatral sujeita a inúmeros sobressaltos, mudanças e interrupções constantes. A sobrevivência destas estruturas, instituições, profissionais e projectos depende essencialmente, como é do conhecimento público, dos apoios concedidos pelo Estado e a sua distribuição é feita por cinco grandes regiões: Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo, Algarve, Centro e Norte, sendo as categorias contempladas no domínio das chamadas artes performativas as seguintes: Teatro, Dança, Projectos Transdisciplinares e Música. Refiro este aspecto porque, embora não constitua mais uma vez a lente pela qual vou apresentar uma leitura do actual panorama teatral e performativo português, é certamente um dos seus aspectos mais importantes. O trabalho dos profissionais em apreço depende maioritariamente de subsídios, que são concedidos a projectos pontuais ou sustentados, de dois ou quatro anos. O pressuposto político desta situação é o de que os artistas prestam ou devem prestar um serviço público independente que constitui um bem de acesso democrático e que, uma vez que assim é, este bem deve ser acessível a todos. Para que este serviço seja independente, não pode depender por conseguinte de critérios de natureza comercial nem da afluência massificada às salas. É claro que é fácil perceber que este tipo de independência cria outros modos de dependência que, a meu ver, não são, felizmente porém, ideológicos. Um dos aspectos negativos dos subsídios é evidentemente o facto de que, de um modo geral, nunca se tem o dinheiro suficiente, porque aquilo que do orçamento de Estado cabe à cultura é anedótico e porque, sendo embora pouco, é preciso reparti-lo por inúmeras instituições que, por vezes, são obrigadas a uma lógica de produção endogâmica de modo a rentabilizar os seus parcos recursos. Por outro lado, não há, na maior parte dos casos, uma cultura de harmonia entre os subsídios e a geração de fontes autónomas de receitas, através de efectivas parcerias de co-produção, etc., mesmo que a isso não corresponda (e não deve obviamente corresponder) uma perspectiva comercial. O resultado mais uma vez é a precariedade e a impossibilidade de uma programação sustentada a longo prazo, sobretudo fora de instituições já sedimentadas. Um outro aspecto negativo é a ideia, não explicitamente formulada por parte do Estado, segundo a qual a concessão dos subsídios, ou a construção de uma rede de teatros municipais, certamente interessantes do ponto de vista arquitectónico, esgota a missão do Estado relativamente ao teatro e às artes em geral e ao desenvolvimento de uma política cultural sustentada. O subsídio corresponde assim duplamente a uma desculpa e a uma estratégia. O teatro é uma coisa relativamente à qual se tem, como Rui Vieira Nery sugere, uma estratégia de damage control (2001: 30). Quer dizer, é uma coisa que não se sabe muito bem por que existe, mas existe, não se sabe muito bem por que se faz, mas faz-se e vai-se fazendo, não se sabe muito bem por que é tão importante para a vida cultural de um país, mas há inúmeras pessoas que dizem que sim, por conseguinte é preciso dar-lhe algum dinheiro. Evidentemente, que não quero com isto dizer que os profissionais do teatro e das artes performativas não tenham eles próprios e, na sua grande maioria, um projecto artístico e cívico mais ou menos definidos.
Com isto termino o que tenho a dizer sobre este aspecto geral, sabendo certamente que disse apenas o óbvio. Mas como julgo que, apesar de tudo, este aspecto geral é de ordem política e o que me interessa mais é a descrição de um determinado panorama artístico, passo por isso à descrição daquele que julgo ser o factor determinante na configuração do actual panorama artístico português, no que ao teatro e às artes performativas diz respeito. Pensando bem, também se trata de um factor de ordem político.
O teatro português contemporâneo é essencialmente o resultado directo ou indirecto da Revolução de Abril de 1974, mesmo que a motivação ideológica, ou a reacção a ela, já há muito tenha deixado de fazer sentido, tanto para as companhias que então se formaram, como para os praticantes de teatro que entretanto se lhe seguiram. Seguindo muito de perto, nesta categorização e caracterização, Eugénia Vasques no seu texto 9 Considerations autour du Thêatre des années 90, datado de 1998, o teatro português contemporâneo é, por isso, aquele que é realizado por companhias que, nascidas nesse momento, ainda aí encontram um alento identitário forte, mesmo que a sua busca já seja outra, as companhias de teatro independente; por alguns freelancers de talento, que se afirmaram na década de 80 e que recusaram esse enquadramento para o qual as circunstâncias políticas e artísticas orientavam; por grupos ou companhias de
teatro alternativo, que foram criadas nos anos 90 com um cariz de vanguarda e diferença, mas nas quais se verifica agora uma espécie de utopia da ideologia, que se manifesta em temas relacionados com Portugal, o teatro e a sua missão, a ideia de companhia; por alguns novos para quem a questão nem se coloca, mas que herdaram esse contexto e tentam encontrar outro modo de expressão teatral, cada vez mais performativo, inclusivo e dialogante, em que as questões de género, identidade, dramaturgia, interrogação e decomposição das disciplinas artísticas são as cruciais. Por conseguinte, este panorama teatral e performativo começa a constituir-se no espírito colectivista e ideológico de uma luta pela liberdade e pela democracia, afirma essa liberdade nos anos que se seguem à Revolução, deve a sua existência e forma a uma realidade social, que teve de aprender a viver em democracia e pela democracia, confronta-se, mais recentemente, com uma espécie de ressaca de uma orientação que pode ser ideológica, num sentido lato, mas é também certamente ética e artística.
As chamadas companhias de teatro independente têm agora uma dimensão nacional e internacional e uma identidade mais ou menos sedimentada, mas foram fundadas uns anos antes de 1974, nesse ano ou nos anos imediatamente posteriores à Revolução, e enquadraram-se no seu programa e ímpeto ideológicos, mesmo se agora tentam outras formas de posicionamento político e pesquisa teatrais. Refiro-me, por exemplo, à Comuna – Teatro Pesquisa (1972); Teatro da Cornucópia (1973), O Bando (1974), Casa da Comédia (1975), Centro Cultural de Évora – CENDREV (1975); A Barraca (1976); Seiva Trupe (1978).
Parece-me incontroverso dizer que a Comuna, o Teatro da Cornucópia e O Bando, são hoje as companhias de teatro portuguesas mais conhecidas e provavelmente as que apresentam uma actividade regular mais importante e coerente. Todas elas estão intimamente relacionadas com os seus respectivos líderes, João Mota, um ex-discípulo de Peter Brook, um pedagogo e um sacerdote do teatro; Luís Miguel Cintra, um ex-aluno de Humanidades, que se afirma desde logo com a encenação de um Anfitrião, ainda na Universidade de Letras; e João Brites, um pintor e escultor, que estuda artes na Bélgica, onde é exilado político, até regressar em 1974. Correndo o risco das generalizações e a perplexidade das pessoas em questão, diria que João Mota é um sacerdote oriental, Luís Miguel Cintra é um pregador protestante, João Brites é um ateu visionário.Impõem-se necessariamente algumas palavras sobre estas companhias.
A Comuna – Teatro Pesquisa foi fundada no 1º de Maio de 1972 e suponho ser espúrio assinalar a ousadia do gesto. Não obstante considerar que a Comuna não teria sobrevivido até hoje, se não tivesse adoptado alguns princípios artísticos que justificam e sustêm o trabalho da companhia, é também minha convicção que esses princípios definem um posicionamento filosófico e político, que não se circunscrevem ao engajamento ideológico inicial mas que aí têm o alento inicial. A meu ver são estes os seguintes:
a) Um conceito religioso e ritual do acto teatral, que se realiza e experimenta como experiência de comunhão mística, essencial e transcendental;
b) Uma completa admiração e veneração pelo actor e pelo seu trabalho que, neste sentido, tem de ser de uma precisão exacta e objecto de um longo treino e convivência comum, i. e., na Comuna;
c) A ideia de que viver em democracia é por vezes mais difícil do que a situação oposta, uma vez que existe uma tendência para nos encostarmos a conforto do poder democrático;
d) Uma certa ideia de teatro como divertimento, que funda também a comuna no teatro popular português e na revista;
e) A noção de que a casa do teatro é também um espaço de convívio humano, mesmo para aqueles que só aí querem ir ter uma conversa e não ficam para o espectáculo.
O Teatro da Cornucópia foi fundado em 1973 e é muitas vezes referido como o verdadeiro Teatro Nacional em Portugal, em virtude, parece-me, da consistência da sua programação, do rigor com que é levada à cena, da identidade estética construída, da propriedade dos materiais para-teatrais produzidos, numa espécie de investigação e acção dramatúrgicas de escola brechtiana. Provavelmente estes aspectos seriam absolutamente impossíveis numa lógica que não privilegiasse a sedimentação de uma maturidade estética, inerente à própria ideia de companhia. Luís Miguel Cintra afirma que por uma nova companhia de Teatro deveriam nascer mil estrelas no céu. Luís Miguel Cintra acredita, num tempo muito contrário a essa ideia, na equação entre textos literários do género dramático (com uma preferência clara pelos clássicos) e a arte do teatro e assumiu a responsabilidade de levar à cena esta importante missão que se traduz num estudo atento, na tradução de materiais, mas numa direcção de actores não-naturalista que evidencia o actor e a representação. Às vezes, o trabalho da Cornucópia é acusado de ser elitista e arrogante e até ideologicamente ambíguo e os espectáculos são frequentemente apodados de serem muito longos, muito aborrecidos, descontextualizados e frios. No entanto, também quase sempre esses espectáculos são considerados exactos e de uma inflexibilidade estética de princípios, materiais e procedimentos que são também a marca da sua identidade.
O Bando foi fundado em 1974 e começou por caracterizar-se como sendo teatro de animação para crianças. Obviamente não se tratava de um teatro sobre gnomos e fadinhas, mas de um teatro com crianças e para crianças com uma admirável consciência política. Os primeiros anos da sua existência foram de dificuldades extremas e espírito colectivista combatente e empenhado. Depois da itinerância, militante e por necessidade, e de passar por inúmeros lugares e projectos de lugar abortados, por faltas várias, O Bando descobriu em 1999 o seu actual poiso: uma antiga quinta de criação de porcos em Palmela, espaço que dá o mote para o seu primeiro espectáculo nesse lugar: uma espécie de site-specific denominado A Porca. Suponho ser n’O Bando que é mais fácil encontrar essa vinculação ideológica clara, de orientação marxista, que ainda é evocada em conversas acerca de reuniões longuíssimas para decidir sobre tudo e pequenos nadas, na referência ao espírito colectivista inicial, em que todos faziam tudo e de tudo, na memória das inevitáveis dissensões, dissidências e ulteriores regressos e até nas experiências comunitárias que ainda hoje é possível viver, como a colheita das azeitonas, ou as festas abertas aos amigos do Bando nos primeiros Sábados de cada mês. Mas afinal o que distingue o Bando na cena teatral portuguesa?
a) O gosto pelo impacto visual e pela dramaturgia do espaço, apetrechada de inúmeros intervenientes, profissionais ou não, populares ou não, e das inevitáveis máquinas de cena, uma espécie de maquinaria épica escultórica, que parecendo tão artesanal é profundamente sofisticada e dinâmica;
b) A criação de um teatro que por vezes é não-teatral, pelos textos quase exclusivamente de proveniência não-dramática, pela natureza plástica do espectáculo com inúmeros pontos de focagem, o que deixa o espectador com a sensação de estar sempre a perder qualquer coisa, pelo privilégio concedido aos rituais sagrados e profanos e às actividades da e na comunidade;
c) A criação de uma gramática para a compreensão e sistematização do trabalho de actor, baseada nos conceitos de Corporalidade, Oralidade e Interioridade;
d) A exploração de uma cena privilegiadamente grotesca e expressionista que contradiz um sentido de essencialidade que se quer transmitir;
e) A abertura à constante discussão de princípios, por espectadores, profissionais e não profissionais, críticos, filósofos, antropólogos, artistas plásticos e outros, numa tentativa algo utópica de confirmar ou obter certezas.
2. O segundo painel a formar o nosso panorama teatral e performativo é constituído por uma geração de artistas particularmente talentosos e que, aparecendo como voz autónoma e rebelde na segunda metade dos anos 80, decide trabalhar no regime de free-lance, tentando ver-se livre do espírito colectivista e agora já institucionalizado das companhias que anteriormente descrevi. Como facilmente se percebe, estes artistas não tiveram uma vida fácil, ao recusarem um posicionamento institucional e um enquadramento estético e ideológico: No entanto, a sua afirmação de independência é em sim mesma relevante porque também ela é política, ética e uma consequência da liberdade. É um gesto de liberdade estética e profissional, contra aqueles que anteriormente tinham lutado em nome da liberdade, e é sobretudo um gesto de afirmação profissional que chama atenção para a capacidade de gerir autonomamente a carreira, ou no contexto de importantes produtoras que então também se criaram (por exemplo a Cassefaz de Miguel Abreu, 1987), e de encontrar nessa gestão outros espaços de afirmação profissional, alguns relativamente aos quais o mundo do teatro profissional ainda hoje é renitente: a televisão, as novelas, a publicidade, etc. e outros que abriram novas perspectivas dramatúrgicas e artísticas, de pendor performativo e transdisciplinar. É o momento em que «On parle alors de ‘nouvelles valeurs’, de ‘fin de la dictature du metteur en scène’, de ‘grammaire’ de la ‘nouvelle danse’, du ‘noveau thêatre’. Les ‘arts performatifs’ commencent à faire leur chemin sur les scènes alternatives portugaises.» (VASQUES, 1999: 2).
3. Como anteriormente disse, na segunda metade dos anos 80 e durante os anos 90, verifica-se novamente um ímpeto de agregação artística na forma de companhias, mais ou menos estáveis e duradouras, cuja principal característica é cortar com os
princípios estéticos dos seus precursores e com o compromisso ideológico dos seus projectos, como fazem os free-lancers, mas agora através de projectos que se apresentam como alternativos, periféricos e vanguardistas. Pretendem acima de tudo que o teatro seja uma coisa a não temer em que é possível desconstruir, distorcer, citar, apropriar e conjugar com outros materiais e linguagens. Trata-se para estas companhias e grupos de se constituírem como ponto nevrálgico a partir do qual se constrói um destino artístico e profissional. Já não é o texto, ou a ideologia mas a identidade radical da companhia que é o motor da criação. Paradoxalmente, ou talvez nem tanto porque a criação de algumas condições de estabilidade para a carreira também constituía e constitui um objectivo importante para estas companhias ou grupos, embora estes se apresentem como alternativos, aspiram também a uma institucionalização relativamente rápida. Realmente oriundos ou conceptualmente provenientes dos subúrbios de Lisboa e do teatro, ou identificando-se com uma qualquer diferença identitária (baseada na proveniência social, na educação, na história pessoal, no género, orientação sexual, etc.), os artistas que agora se apresentam têm já fortes traços e ligações identitárias, que os congregam e definem, e em consequência dos quais se formam a companhia, o grupo, os projectos. Como Eugénia Vasques sugere dão origem a um novo teatro político neo-brechtiano, através de estéticas radicais, que enfatizam a minoria e a diferença, e sobretudo através da ideia de que o pessoal é também político.
Como exemplos deste grupo, temos companhias como o Teatro da Garagem (1989), Teatro Meridional (1992), Olho (1991), As Boas Raparigas (1994), Artistas Unidos (1996), esta última sobretudo uma estrutura de produção e promoção de artistas, jovens e menos jovens, que de algum modo revoluciona a cena teatral portuguesa, pela quantidade de espectáculos que é capaz de pôr em cena e sobretudo pela divulgação do teatro de Brecht, de uma nova dramaturgia de autores portugueses, e de autores estrangeiros quase completamente desconhecidos do público português, como Harold Pinter, Spiro Simone, Jon Fosse, Jean-Luc Lagarce, etc. A par destas companhias é justo também referir projectos mais recentes, mas igualmente imbuídos do mesmo espírito alternativo, vanguardista e fortemente centrado em questões identitárias e de diferença, como o Teatro Bruto, Projecto Teatral, Útero Associação Cultural, e alguns outros artistas e performers, nos quais se distinguem algumas mulheres, que por vezes trabalham individualmente ou no seio de uma companhia ou grupo, por eles ou elas liderado ou não. É o caso de Lúcia Sigalho, Mónica Calle e a Casa Conveniente, Maria Duarte, Miguel Loureiro, Luís Castro e o Espaço Karnart.
É inevitável falar um minuto sobre o Teatro da Garagem, companhia a qual pertenço, desde 2003, e na qual exerço a função de dramaturgista. Como o próprio nome indica, o TdG nasceu numa garagem dos subúrbios de Lisboa, Abóboda – Monte do Trigo, residiu alguns anos num armazém no Poço do Bispo, uma zona problemática do ponto de vista social, e encontra-se agora no Teatro Taborda, na Costa do Castelo, num edifício com uma belíssima vista sobre Lisboa, mas de difícil acesso. O director da companhia, Carlos J. Pessoa, é também o autor da maioria dos textos levados à cena e o seu encenador, uma vez que por opção artística a companhia decidiu apenas esparsamente fazer textos de repertório. O texto, seja ele de Carlos J. Pessoa ou de outro autor, é um material pensado para a cena e para os actores da companhia e é um material manipulável e equivalente em termos expressivos a qualquer outro material presente na cena. Aliás julgo que foi e é o cumprimento deste objectivo que justifica a minha presença no TdG e a função por vezes delicada que me cabe. Seja como for, é evidente que, para o bem e para o mal, o TdG deve muito da sua identidade ao facto de se tratar de um teatro de autor, com uma produção prolífica, atípica e dificilmente classificável do ponto de vista estilístico: textos experimentais e desconexos, citações, colagens, rescrita dos clássicos, numa linguagem banal, quotidiana, barroca, poética, autobiográfica, etc. Como aconteceu a outras companhias deste momento, na cena teatral e performativa portuguesa, o trabalho evoluiu de um ponto de partida radical de ruptura e afirmação experimental, pessoal, identitária e estética, para uma progressiva preocupação com questões éticas e relacionadas com a função cívica do teatro. Isto decorre de imperativos relacionados com a institucionalização, mas do meu ponto de vista não é apenas, nem essencialmente, uma consequência disso. Antes se trata de uma resposta a algumas questões insistentes e determinantes para a algumas destas companhias, e para o TdG em particular, entre as quais a de saber o que é que andamos cá a fazer e por que é que o fazemos ou temos de fazer, i. e., o que é que é isto de prestar um ‘serviço público’. É na expressão desta inquietação que por vezes detecto aquilo que anteriormente referi como uma espécie de utopia da ideologia, como se de repente aquilo com que nos deparamos fosse o deserto de um ideário político, anteriormente tão evidente e motivado pelas circunstâncias. É neste contexto, por exemplo, que situo um dos temas mais recorrentes do TdG, mas também do Teatro Meridional, embora num registo estético completamente diferente, para referir um outro nome, a saber: O que é Portugal e o que significa ser português? A relevância política do tema não é obviamente despicienda embora o seu tratamento seja claramente difícil e exija uma atitude responsável perante o Outro e o Eu, uma vez que se pode percorrer todo o espectro da idiotice, que vai do politicamente inaceitável, ao artisticamente presunçoso. Por um lado, e felizmente, seja lá o que formos, somos certamente europeus, mas também brasileiros e africanos e ucranianos, a viver num mundo global, multiétnico e diferenciado culturalmente. Por outro lado, Trás-os-Montes e o Alentejo, que antigamente eram os lugares da acção politica e cultural, não são, agora, apenas coisas distantes, periféricas, exóticas e belas que enchem a vista de azul e os pulmões de ar puro.
Finalmente, chegamos ao trabalho diverso e heteróclito de jovens artistas e performers que nasceram já depois ou mesmo muito depois do vinte cinco de Abril de 1974 e estão a traçar os seus territórios artísticos no momento, nomes como Teatro Praga, Mala Voadora, Cão Solteiro, Materiais Diversos, Martim Pedroso, John Romão, Cláudia Dias. Em primeiro lugar parece-me que aquilo que os distingue é um claro investimento numa formação e experiência artísticas que não são meramente técnicas ou práticas, mas que se constituem através de diversas matérias, discursos e materiais e, sobretudo, se apresentam como internacionais. Este aspecto que é sobretudo evidente no contexto da dança portuguesa contemporânea, com um alcance internacional notável, nos últimos anos, é decisivo relativamente ao enquadramento da atitude destes artistas no panorama que procurámos descrever. De facto, talvez seja difícil perceber como é que o trabalho deles se pode relacionar com os seus antecessores e as suas preocupações mais ou menos ideológicas. A resposta é no entanto simples: na realidade não tem de se relacionar ou não se relaciona mesmo e eles vivem bem com isso. Finalmente, parecem viver confortáveis com a experimentação, a tecnologia e não se arrepiam perante o tratamento de problemas filosóficos ou com interrogações sobre a natureza da obra de arte e da linguagem. Falam de Deleuze, Derrida, Agamben, mas também de Marx, Lacan e Freud, claro, comentam discursos políticos, às vezes levando-os a sério outras vezes não, e sustentam que isso é teatro ou dança ou dança-teatro ou outra coisa a que preferem não dar um nome reconhecível, por exemplo Perfinst. Têm um enorme apreço por uma abordagem dramatúrgica à cena, pela interrogação dos limites dos objectos performativos e pela sua exploração tecnológica, divisão e possibilidade enquanto matéria expressiva – veja-se por exemplo o trabalho DreamPlay, de Martim Pedroso, baseado na peça O Sonho de Strindberg, constituído por três objectos distintos, uma peça, um filme e uma exposição. Divulgam o trabalho pela internet, enviam newsletters, e põem vídeos no Youtube. É claro que aqueles que os antecederam também fazem isso, mas o problema é que não parece a mesma coisa ou não fazem tão bem. A diferença julgo estar no facto de, num certo sentido, não serem realmente diferentes de tudo o que se vai passando no mundo e por isso não é mais possível ou admissível dizer aquela maravilhosa frase-medallha da melancolia portuguesa: “Pois, em Portugal, estamos atrasados 20 anos relativamente ao que se faz lá fora.” E talvez isto corresponda de facto ao significado da expressão ‘ser um cidadão do mundo’. Uma última nota se impõe relativamente a um aspecto que julgo vir a determinar decisivamente a produção artística em consideração, no futuro imediato. Trata-se de um conjunto de profissionais que, respondendo à oferta de possibilidades de formação recentes no campo das artes performativas e do teatro, por exemplo a criação de diferentes Mestrados em Teatro e Cinema, na Escola Superior de Teatro e Cinema, não deixarão de afirmar, no seu subsequente trabalho artístico, esta nova visão do teatro e das artes performativas como matérias de investigação e realização teórico-prática.

David Antunes

Bibliografia
AA VV, 2007, Três Desejos para o Teatro em Portugal, Lisboa: São Luiz Teatro Municipal.
NERY, Rui Vieira, 2001, «Uma nova política para o teatro: Um desafio à sociedade, ao estado e aos próprios artistas», Adágio, 28/29, Janeiro-Maio, pp. 29-40.
VASQUES, Eugénia, 1999, Considerations Autour du Théâtre au Portugal des Années 90, Lisboa : MC, IPAE.

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